Os autores de clássicos, alguns deles, inicialmente escreveram para um número reduzido de leitores. Um exemplo foi Machado de Assis, atuando numa época em que cerca de 70% a 80% da população brasileira se compunha de analfabetos, conforme indicam alguns estudos. Dos poucos letrados, muitos possivelmente não se interessavam por sua obra e não a valorizavam. Quanto à minoria (talvez interessada), que proporção realmente conseguia captar os textos daquele escritor?
Machado nem por isso recuou sobre o que lhe parecia óbvio e necessário – o impulso criador conduzindo-o à elaboração de verdadeiras obras-primas. Atualmente, ele pode ser lido por um número expressivamente maior de leitores e goza, postumamente, de inquestionável prestígio. Esses dados nos levam a imaginar sua genialidade artística se inteirando senão numa condição existencial e experimental autocentrada, aliada a um senso crítico e estético que só foi se aperfeiçoando, chegando a níveis hoje considerados por muitos como irretocáveis.
Do começo ao fim de sua trajetória, entretanto, não há como desconsiderar o contexto de iletrados em redor do homem mulato, gago, epilético e brilhante, que efetivamente se punha com indiferença ao povo alheio de sua manifestação artística. O fato é curioso e dá a supor a abstração e o fenômeno que não se fazem inteiramente conhecidos nem mandatoriamente retorcidos em indivíduos com a aptidão de um gênio, em matéria de arte. Hoje em dia, passado mais de um século, dizem que o autor continua ocupando uma posição ainda não alcançada por outro escritor brasileiro, apesar do vasto acervo e de outros facilitadores à disposição dos aventureiros na literatura. Se fossem considerados esses fatores e outros (aqui ignorados) cujas enumerações talvez retraíssem o fio central do texto, mais nítida resultará a profundidade de Machado em sua discreta solidão.
Juliano Ferro
Recife, 6/5/24
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