Juliano Ferro
Deitado na cama, com a face erguida e os olhos semicerrados, Luciano reparava a penumbra a esboçar o corpo de Dolores sobre o seu. Montava-o como a um cavalo manso, que se deixa conduzir e proporciona ao jóquei a maciez do seu trote e o arco adequado do dorso. Ela contraía os músculos da face, mordia os lábios e balbuciava palavras de sensualidade e afeto. Ele voltava a fechar os olhos e se perdia em elucubrações. Lembrava-se de um documentário sobre formigas que assistira dias antes. Talvez aquela sensação de êxtase, ali com Dolores, o fizesse associá-los à lembrança que o deslumbrava. Causava espécie o fato de os insetos se unirem, formarem uma bolha ou jangada e juntos atravessarem o caudaloso rio, para aportarem na outra margem. Reabriu os olhos e viu a jovem de rosto acobreado, em charco, seus cabelos à meia-luz pareciam aquele formigueiro de braços dados, ondulando, flutuando, ao encontro de qualquer sorte. Ele continuou torcendo por elas, excitava-se em presenciar o desígnio e logro de criaturas aparentemente desprestigiadas. Elas fariam outro ninho, guardariam os ovos que iriam gerar outros visionários, num labor de irreflexão capaz de expandir outras linhas de existência.
Dolores desgrudou-se de Luciano e rolou na cama. Ofegava, a boca fazia um ricto de cansaço e satisfação. Ela teve vontade de falar, questionar ou arrematar algum pensamento que Luciano provavelmente estivesse por dizer. Preparou-se para endossar qualquer: “Também adorei...” ou “Você também foi ótimo...” Mas Luciano abriu os olhos, olhou para ela ao seu lado, molhada como um inseto arquejante, feito triunfasse após a empreitada, e seu relaxamento o acoroçoou a produzir aquelas palavras:
- Você já viu um formigueiro atravessar um rio?
Dolores moveu o rosto em direção ao dele, num movimento cuja prontidão por si anunciava a ruptura com o clima de relaxamento que antes a invadira.
- Se eu já vi o quê?
Luciano captou a voz do tédio nos lábios dela, sabia que ela ouvira muito bem a pergunta, porque o quarto abrigava um silêncio frágil até mesmo a um grilo. Ele entendeu que precisava desistir do tema.
- Não, nada não – atrapalhou-se nas palavras.
- Você acaba de transar comigo e me vem falar em formiga?
Ele teve vontade de contestar o pasmo, já que, segundos antes, ela demonstrara não ter ouvido a pergunta justamente para grifá-la e no ínterim arquitetar o seu repúdio. Ele poderia ter dado um contragolpe: “Não foi isso que eu falei”, porque ela se fizera de surda. Ou, “Se já tinha ouvido, por que me veio pedir que repetisse a pergunta?” Atentaria contra a lógica que a licenciava no protesto. Mas Luciano preferiu não estender a conversa, não perderia tempo, já cônscio de que ela não se interessaria pelo assunto. Sua impaciência e a prudência guiaram apenas o seguinte:
- Que horas são?
O contexto da pergunta e o tom de voz de Luciano informaram a Dolores sua vontade de voltar a ser sozinho no apartamento. Já haviam alcançado à margem. Não fariam outro ninho para desovarem e se protegeram na estação nova. Precisavam, isto sim: de outro banho, para verem de vez as patas e as antenas desgrudadas. Cada um cuidaria de sua vida, e Luciano voltaria a pensar em Jussara, a dona real de seus reiterantes pensamentos.
Ele acordou no outro dia para trabalhar na repartição. Viu que na cama ficara um brinco da mulher. Apertou-o entre os dedos e o jogou na lixeira do banheiro. Não se guarneceria de um pretexto para unir-se a ela novamente, porque antes queria que aqueles encontros fossem com Jussara. Já era tempo de parar as reuniões casuais com Dolores. Não teria visto o brinco, lá não teria ficado. Mas Dolores nunca fez questão, nem mesmo quando encontrou Luciano nos ensaios de maracatu. Nunca reclamou qualquer ausência, decerto o penduricalho não valia mais que uns couros de rato na carteira. Para ela, o adorno de lata sinuosa ainda mais se reduzia em posse daquele homem com o gênio em ninharias, que após o amor se detinha em travessias de formiga.
Importa dizer como se conheceram, ele e Dolores. Foi nos ensaios de maracatu, aos quais ia por amor e para vestir o caboclo de lança, por cuja história e cultura muito e havia tanto se atraía. Desde criança, era de notar seu interesse por arte e cultura, atrevia o bedelho sobre a história dos homens de sua terra e de qualquer lugar. Gostava de viajar, estudava inglês e francês. Formara-se em engenharia civil, um contrassenso em sua formação. Nunca entendeu bem o porquê. Na época, justificava a escolha com aquelas ditas oportunidades de profissão. Afinal, conseguira uma, adquirira vida financeira confortável, em desacordo embora fosse com o tamanho de sua curiosidade. Não se esforçava, na engenharia, para ir além. Concedia a ela ao menos um esforço para manter o emprego e as contas em dia. Falavam que ele era bom com edificações, e Luciano cuidava que dava muito menos do seu máximo. Somente cumpria o seu papel, galgava objetivos e fazia jus aos compromissos lançados em contrato. Às questões de espírito, ciência e cultura, daria trinta horas do seu dia, se as possuísse.
Com 48 anos, já havia renunciado a muitos interesses que antes perturbaram seus pensamentos. Possuía, na rede social, uma coleção de poucas imagens. Não tinha muita paciência para aquelas cenas. Sequer dispunha do vigor de antes, da pele lisa de outrora, da paciência. O encontro com Dolores havia sido mais um dos que casualmente ocorriam. Ela pedira carona na volta do ensaio de maracatu, em que ambos figuravam como caboclo de lança e rainha. Dolores era mulata, assim como Luciano. Vicejava seus 31 anos, tinha o corpo bem-feito e já havia demonstrado seu interesse pelo engenheiro, que nascera na zona rural de Nazaré da Mata e fixara residência em Olinda, após a conclusão dos estudos de engenharia.
Quase um cinquentão, o homem fundamentalmente dividia a atenção entre os dois anelos que o faziam em contraposição: apresentar-se como caboclo de lança em carnavais e ser enamorado de Jussara, uma branca da Zona Sul do Recife. O primeiro, já conquistado, atrapalhava o segundo. Quanto a este, fazia-o às ocultas, inclusive porque a moça, apesar de causar-lhe atração por razões que mesmo ele não precisava, não parecia atentar ou associar-se àquele gênero de movimentação da gente de sua terra. Ela, inobstante a origem paupérrima, levava na face certa estampa de ostentação, tinha rotinas e manias as quais não abrigavam os pantins e as caídas de um caboclo feito Luciano.
Quanto a encorpar aquele da lança, personagem folclórico do maracatu rural, com tradição formada em culturas afro-indígenas e outras manifestações populares, iniciou-se quando um velho conhecido adoecera e lhe pedira para substituí-lo nas apresentações de um carnaval, tarefa à qual Luciano se prestou por afeto e que depois, após o antigo caboclo falecer, se viu ainda mais entrelaçado ao encargo. Com o passar do tempo, achou-se tão afeiçoado àquela representação que não teve maneira de deixá-la. Em vez disso, estudou bem a figura simbólica, acerca de suas virtudes, princípios, da força na expressão do seu ritual de purificação, e fascinou-se cada vez mais.
Vivia resolvido quanto a continuar incorporando aquela figura bela e extravagante, exceto pelo fato de não querer revelar-se. As vestes coloridas lhe facultavam essa conduta, já que com aquela cabeça de celofane, manto, mangas longas, calças compridas e meias até o joelho, seu corpo figurava fechado, tal a impermeabilidade do espírito, protegido dias antes da apresentação. Sequer seu sorriso era visto, porquanto um cravo era conduzido nos lábios. O brilho dos olhos também se escondia atrás de óculos bem escuros, e mesmo os poros da pele eram tomados de vermelho berrante. Os familiares e amigos do trabalho nunca o reconheceriam. Ele alegava para si mesmo que o caboclo não deveria possuir aquelas associações, porque era outra maneira de resguardá-lo impoluto, desafetado daquelas relações, muitas das quais maculariam qualquer castiço, já que sua expurgação era imprescindível ao afastamento de agouros e azares. Noutro íntimo, tinha certo receio pelo pavor que aquela figura de movimentos frenéticos certamente causaria nos pobres de espírito e naqueles que ignoram as veias de sua história. Afinal, Luciano também circulava entre a gente soberba e inculta, degradava-se junto a ela, a ponto de assim conhecer sua Jussara querida.
Ela tinha as formas e trejeitos pelos quais seu meio social reclamava. Sua burrice estava na proporção das nádegas e do busto. A cintura e a erudição combinavam em atrofia, mas não antagonizavam com as suas intenções, porém era de reconhecer sua simpatia e as vantagens de suas superfícies no trato com os conhecidos. Ela atingia objetivos, inclusive aqueles os quais não perseguia, como atrair Luciano, espécime dissonante de tudo quanto profundamente tocava aquela mulher. Quanto à sua felicidade, aquilo era uma interrogação para Luciano, porque acima do sorriso de marfim afiado grudavam-se dois olhos ligeiramente tristes em Jussara. Luciano a conheceu numa formatura, ela brilhava entre os convidados, vestia com asseio e agarrava uma taça fina. Dançava como se fosse o centro da galáxia, posava para as fotos sem receio do enquadramento, como uma mulher bonita cuja feiura acaso registrada não revelasse senão a má captura da máquina ou a imperícia do fotógrafo.
Ele não teve tanta dificuldade de se aproximar. Afinal, Luciano tinha lá seu virtuosismo estético, era homenzarrão ágil e de espáduas largas, possuía expressão de confiança e uma barba bem cuidada sobre mandíbulas rígidas quais paralelepípedos. Mas sua sobressalência era sublinhada na sagacidade de um homem experimentado na vida. Cativava quando se tratava de antecipar-se sobre os reflexos e ideias dela, fazendo-a apequenar-se na relação desigual de inteligência. Em contraparte, ela ganhava dele na habilidade de perfilhar feitos a distância, de ser reverenciada também por quem não se abeirasse dela. Bastava admirá-la de longe, vê-la dançar e sorrir interagindo com as pessoas, com a autoconfiança de pessoa impecável. Ou acompanhá-la em redes sociais. Sua importância era vertida em números. Número de amigos nas redes, de interações. As imagens deslumbravam leigos e não só os fúteis, já que Luciano remanescera fisgado por aquela mulher almejada, cuja proximidade com ela fazia crer que ele estava prestes a atingir um pódio e erguer o seu troféu. Dormir com ela naquela mesma noite não foi difícil. Enquanto muitos bebiam e minuíam em reflexo, Luciano sorvia no álcool apenas o bocado para encorajá-lo na caçada. Como sem passo a passo ou explicações, parecia que, de repente, se embolavam na cama, após a formatura. Amanheceram desgrudados e ela precisou de um primeiro esforço para lembrar-se de como chegara ali. Sorriu como se dissesse “Sou uma doida mesmo...” Ébria que dera vez a quem não trejeitava à sua altura. Sem cerimônias, pediu um gole d’água e acendeu um cigarro. Luciano não fumava, mas tragava as baforadas daquela dama como se estivesse ventilando os pulmões com essência de benjoim. Ela terminou o cigarro e novamente puxou o homem para si, certa de que satisfaria outra porção do desejo e se despediria sem plano de reencontrá-lo. Ele ainda intentou outra conversa, soube um pouco da história daquela mulher que abandonara a faculdade de publicidade no terceiro período e trabalhava como vendedora numa joalheria.
Encantado com a companhia, por conseguinte com a vida, Luciano se entregou às cotidianas ruminações:
- Hoje Madre Teresa será canonizada...
- Não entendo dessas coisas de santo – ela tornou. – Sei que foi uma mulher boa e dada a caridades, mas o que ela fez para ser considerada santa?
- Ah, não soube? Para a canonização, a cura milagrosa de um brasileiro. Ele tinha abcessos no cérebro e hidrocefalia.
- Bom você ter me lembrado disso, preciso tomar a pílula. Não quero filhos tão cedo, ainda mais com essa emergência horrorosa da microcefalia.
- Não se preocupe, lembrei-me do preservativo.
- Ah, foi? Ótimo! Agora vamos, ou melhor, eu vou. Tenho um encontro com amigas daqui a pouco.
Jussara se organizava para deixar o apartamento de Luciano, comedida mas determinadamente. Tinha um ar de gerência, facilmente faria crer que seguia a uma conferência. Ele ainda lhe dirigiu umas palavras de troça, no fundo querendo sondar-lhe os interesses, como se, caso ela se interessasse pelo tema, ele pudesse desfiar sua versatilidade em atualidades, para quem sabe detê-la um pouco mais em sua presença:
- Certamente vão discutir a base legal do impeachment.
- Eu preciso me interessar pelas pedaladas de bicicleta, elas sim, porque tenho comido e bebido igual a uma vaca – ela riu com desdém. – Este país não tem jeito.
Luciano sorriu. Ela parecia tão graciosa, alheia a qualquer assunto que demandasse esforço intelectual. Talvez estivesse certa por não se deixar afetar com tanta barafunda no Brasil. Ele próprio poderia rever as atenções, quem sabe letargiar-se mais, talvez, assim, até parecesse mais interessante para ela, adaptando-se àquela insciência. Ela terminou de se vestir e caminhou até a porta, sem se importar se o toc-toc dos saltos incomodariam os vizinhos embaixo. Ele também se dirigiu à porta com desapego às pegadas, elas se diferenciavam do habitual. Como que despojadas, pesavam, tinham acordo com a severidade comunicada por Jussara. Ela o olhou, antes de atravessar a porta, e assumiu para si que ele era um homem bonito. Luciano quase adivinhava aquele exame e não receou beijá-la uma última vez. Ela o fez com as mãos livres, mas fez, e fechou os olhos, deixou que suas bocas umedecessem. Após, volteou os olhos sobre a face de Luciano e deu uma última olhadela na sala. Ele percebia que ela procurava outras certezas para justificar sua estada ali. Dolores descuidava no rosto um ar de mistério que o fazia querer, por desafio, esclarecer.
Após aquela noite, Luciano prendeu-se sobretudo aos impasses de Jussara. Acompanhava-a em redes sociais, via cada foto e relia comentários. Não só ele a achava interessante, outras pessoas também o faziam. Ao certo, Luciano não sabia se isso justificava seu interesse por aquela mulher ou tão-somente o encorajava. Afinal, à ponta do lápis, ela não representava o que ele sempre procurara. Jussara destoava, e isso trazia a ele um mistério a inquietá-lo, um ponto de atração. O desejo que ela demonstrava parecia frear na conclusão de um não poder desejar, sem evidentes razões, e aquele senso controvertido parecia precisar de ajuda, da misericórdia de Luciano, como se fosse tarefa sua volvê-la à realidade ou fazê-la confessar ao mundo o seu desejo principal: ser sapiente ou ter Luciano ao pé de si. Enquanto essa realidade não se transfigurava, ele remanescia em arquitetar a conquista, apesar de já ter saído com ela algumas vezes. Conseguia levá-la facilmente para a cama, encontrava-a às escondidas. Via-lhe no rosto a expressão do prazer, mas logo ela se despedia e retornava àquela vida com muita gente, cujo grupo, aos poucos, Luciano percebia que não conseguia acessar. Ele inclusive pensou que pudesse requintar seu jeito de portar-se, para agradá-la, além de usar acessórios para aluciná-la. Postou algumas fotos nas redes. Três imagens, em dias quase seguidos. Em uma, à frente da Igreja da Madre de Deus, usava óculos escuros, sério como se a foto fosse apenas um detalhe na vida de quem unicamente apreciava aquele ponto turístico. Houve poucas interações, Luciano quase excluiu a imagem, ficou com vergonha, porque certamente aquela falta de apoio protestava contra o seu prestígio diante da mulher. A segunda foto foi num bar. Pediu uma cerveja e fez um ar de soberba. Funcionou melhor, houve mais interações, exceto por Jussara. Certamente teria ficado com ciúmes, ou não teria se agradado da bebida ou do cenário, já que ela própria invariavelmente estava por trás de um drink com ornamentos de faisão. A terceira foi tiro e queda. Esteve numa praia do litoral sul, com dois amigos. Posou com uma taça de espumante que amargava em sua boca, na sacada do hotel. Jussara mandou uma mensagem em particular, gracejou dizendo que amava aquela bebida. Luciano não teve dúvida, disse que estaria de volta a Recife no começo da noite, perguntou se ela não queria ir a seu apartamento, quem sabe beber um pouco mais. Ela foi, sequer beberam. Tiveram uma bela noite de amor, e ela parecia cada vez mais interessada em Luciano.
À medida que ele atraía a dama, algo o incomodava: a maneira de adaptar-se a ela, de desviar assuntos que a aborreciam ou demonstrar interesses que não o qualificavam. Mais que isso, a maneira como se dispunha a agradar aquela mulher o desqualificava mais e mais.
O fim de ano se aproximava, e ele precisava comparecer aos ensaios do maracatu. A cada vez que vestia o traje e se olhava no espelho, lembrava-se de Jussara. Qual credibilidade ele teria diante dela, ostentando aquela criatura capaz de pasmar, de modo controverso, quem não se afeiçoava àquele tipo fenomenizado? Os incômodos de Luciano o faziam antagonizar-se. Por outro lado, Dolores, a mulata do maracatu, o encontrava nos ensaios, estava sempre disposta a ele, puxava papo, propunha-se a visitá-lo, mas ele se fechava nas conquistas e nos encontros com Jussara, que também não ia embora nem o deixava. Ele se sentia, por fim, também usado, e foi daí que resolveu tirar a prova das ambições daquela mulher.
Finalmente contou a Jussara sobre sua participação nas formações de maracatu. Ela demonstrou interesse em vê-lo como tal e questionou por que ele nunca havia falado antes sobre o assunto. Ele deu qualquer desculpa e na mesma conversa a convidou para uma apresentação que faria no dezembro daquele 2016. Ela disse que pensaria a respeito, talvez precisasse ir a uma confraternização por ocorrer na mesma data. Jussara acabou cedendo, Luciano lhe havia informado que era um festival de música e que, após os eventos no palco, aconteceria uma festa regada a muita bebida e música eletrônica, numa tenda formada nas proximidades.
Jussara compareceu ao evento, foi com uma amiga. Ambas assistiram às apresentações e fizeram elogios. Apesar de aqueles movimentos expressarem um bocado da cultura local, pareciam destoar do mundo delas, como, após, ela mesma confessaria: “Gostei, achei diferente.” A tensão de Luciano não podia ser captada, por estar disfarçada na veste. Suas pernas e mãos tremiam, o coração parecia que ia escapulir boca em fora. Sob a roupa pesada, dizia para si que aquele nervosismo também acompanhava o artista, que em muito contribuindo no êxtase e na realização da arte enquanto portento a ser visto e sentido. Nesse ânimo foi que ouviu o anúncio de sua apresentação e seguiu conduzindo suas evoluções, os pantins, os escândalos característicos de um caboclo em execução. Volta e meia, do palco, conferia o olhar de Jussara. Olhava-o e parecia conferir também o que as pessoas enxergavam, do que se embebiam, como quisesse interpretar ou absorver a real comoção da apresentação. Parecia identificar-se com algo, certamente teria se arrepiado com o extravasar dos artistas, belo, intenso. Decerto também se curava das mazelas, das energias ruins que o caboclo afastava. Seu coração certamente estaria em festa, sua alma dançava, teria vontade de entoar com o grupo. Ele a viu trocar impressões com a amiga, ambas pareciam deslumbradas, não arrependidas de terem ido. Após aquele evento, ainda foram à festa na tenda eletrônica, com Luciano. Dançaram e beberam até alta madrugada. Os dois seguiram para o apartamento dele e dormiram juntos pela última vez.
Jussara não rompeu com Luciano, também não deu explicações, apenas não viabilizou outros encontros. Ele, a princípio, tentou outras vezes, mas não deu o melhor de seus esforços. Lia Jussara nas entrelinhas e apercebia-se esgotado.
Na terça-feira de carnaval, após a apresentação oficial, caminhou com Dolores pelas ruas de Olinda, depois pediram um taxi e foram para o apartamento dele. Como quisesse demonstrar interesse pelos assuntos de Luciano, ela foi quem insistiu:
- Ainda anda pensando em formigas?
- Formigas? – ele fez um esforço para lembrar, logo entendeu que Dolores falava sobre os interesses deixados a entrever. Concluiu que o sentido da resposta a dar seria o real intento daquela mulher. Ela o admirava, embora não se interessasse por insetos. Mais tarde ele descobriria que ela realmente se excitava na maneira dele ante as sutilezas. Dormiram abraçados naquela noite e não quebraram o jejum da carne, para a devida imposição das cinzas na quarta-feira. Despojados de qualquer pompa, era sabido que ao pó retornariam algum dia.
Recife, setembro de 2022.
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