Juliano Ferro
Minha diarista Maria. Mulher com seus sessenta e poucos anos, nascida e crescida numa zona rural, no interior do nosso estado. É uma senhora de pouca instrução e um tanto incomunicável, a julgar por sua economia de palavras e gestos e pouco esforço empenhado ao sorriso. Não conto as vezes em que seus ásperos monossílabos me incomodaram. Muito ela não se importa em parecer amável, nem quando, por uma veneta, pretende ser, embora eu ache, cá comigo, que verdadeiramente nunca tenha desejado outro comportamento dela. Prefiro admiti-la enxergando-a como quem mal teve tempo para aprimorar delicadeza, a esperar-lhe na cara dura uma amabilidade qualquer. Ela mesma uma vez me disse: “Trabalho feito uma doida desde que me entendo por gente.” Soube por alto de suas constantes idas à lavoura, com os pais, ainda pequena, não lhe cabendo tempo ruim para aquelas obrigações. Quando resolveu mudar-se para a capital, já moça, fez matrícula num curso de costura enquanto trabalhava como empregada doméstica. Um dia, a professora a chamou num canto e falou que ela precisaria antes estudar, porque, inclusive para o ofício da costura, seria necessário um conhecimento básico de cálculo e português. Como ela faria anotações das clientes ou medições sem possuir uma noção mínima dessas matérias? Assim, ela deu entrada num curso para ser alfabetizada. Após, empreendeu na costura, para cuja destreza desejava habilitar-se. Hoje vive desse serviço e das faxinas que ainda consegue fazer. Estas, segundo ela, a tento de pagar seu plano de saúde. Eis um audacioso resumo do indivíduo que, há sete anos, vem uma vez por semana ao meu apartamento, e ante quem não raro me acovardo devido ao seu jeito irritadiço e reclamão.
Outro dia, vendo Maria silenciosa, para lá e para cá, como mulher incansável em seus afazeres, venci o medo e questionei: “Por que você não faz um intervalo na hora do almoço, para um descanso? Dê um tempo no sofá, veja um pouco de TV...”. Ela respondeu que preferia não parar, porque assim terminaria mais cedo. E resmungou o que eu já sabia, quebrando a regular escassez da fala: “Vivi minha vida inteira assim, já me acostumei”. Solteira, sem filhos, parece que seus amores foram sempre adiados, assim como outros medos e o compromisso com a vaidade e a paciência.
Maria é correta, proba. E frequenta a igreja. Até aí, sem novidade. Mas, outro dia, para minha enorme surpresa, recebi uma mensagem no celular, ela me destinava um vídeo no qual, em um culto na igreja, empunhava o microfone e cantava algum louvor, com o mesmo rosto de quem não vê graça na vida e uma voz emprestada com indiferença ao tom da canção. Espiei o vídeo por alguns segundos. Não sei por que não respondi. Limitei-me a examiná-la na pose pedregosa e voz monocórdica, atrás daqueles olhos de bisão que me intimidam toda terça-feira. Sim, Maria é uma mulher da igreja e preza por suas virtudes. Além de pasmar, quis imaginar que ela também orava por mim. Em seu crivo, devo andar precisado, sabe-se lá por tais e quantos motivos. Eu, que também não lhe dirijo afetos e me atrapalho quando ouso uma conversa ou enfrento os seus olhos, devo não passar de uma figura perecível, pálido que sou, despenteado ao longo do dia, invariavelmente inerte ante um livro ou um computador, este que em muito contribui para minha efígie de criatura sem sangue nas veias.
Reiterei sucintamente a minha heroína, antes de enunciar o episódio que por ora mais importa. Há situações e atitudes que pouco significam se desacompanhadas de seu contexto, embora algumas depreensões não valham o esforço de enumerá-las, por serem de pouca compreensão para quem não é versado em acompanhar certos movimentos. Aqui, notadamente, os de Maria. Mas o referido por ora é suficiente.
É que outro dia, enquanto eu me dirigia à cozinha para pegar um copo com água, ela seguia o mesmo caminho, em busca da lixeira. Empunhava uma barata na mão e descuidava no rosto um ar de coragem e triunfo. Deitou-me os olhos e disse: “Olha quem estava na cortina...”. Ergueu mais um pouco o punho e pude ratificar o que contemplara pelas frestas dos seus dedos. Uma barata enorme, vermelha e cascuda, por certo ainda fresca, porque, recém apanhada, seguia íntegra e bolachuda, diria até crocante, a lembrar a protagonista de A Paixão Segundo G.H.. Por sorte ou comiseração do meu próprio instinto, não me invadiu qualquer ímpeto de encostar-lhe a língua, arroubo esse que Clarice entregou à personagem de sua saborosa novela. Estremeci em minha coadjuvação, perante quem elevava sua bravura. Dei um passo para trás e as deixei passar por um caminho livre e sem interpelações. Tentei em vão alcançar melhor a vista à barata, para concluir se ela estava de fato morta, viva ou semiviva. Por razão que desconheço, essa informação me faz falta até hoje. Minha cozinha faz um L. Eu as vi sumir na esquina do cômodo e não pude ver o desfecho do inseto.
Os dias passaram e ontem voltei de uma viagem. Encontrei na parede da cozinha outra barata, tão gorda e fulgente quanto a que minha heroína encerrara corajosamente em seu punho. Parece me ter percebido a presença, porque fez um movimento irrequieto de asas, como se fosse voar, e essa hipótese me nauseou ante um possível encontro com o meu corpo. Repudiei de imediato. Apressei os passos e busquei um veneno a modo de spray. Distante um metro ou dois, dei-lhe com três jatos da solução. A morte não foi instantânea. Ela empreendeu, ainda, algumas escaladas pela parede, sem sucesso, sempre caindo. Enfim, expôs o ventre e continuou a bulir-se até que suas pernas de palito retorcido finalmente aquietassem. Ao vê-la fenecida, após um ato de pouca coragem, saboreei o gosto amargo de atestar-lhe o óbito. Dó, mas tive dó do bicho. E cá me interpelei: “Não poderia ter conquistado outros caminhos? Por que me veio alcançar no décimo quinto andar, obrigando-me a desferir, como por necessidade, o asqueroso golpe e realizar exames de autoconsciência que, naquele momento, gostaria de ter evitado...”
Recife, 1º/03/2022.
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